Devido à forma como a temperatura é definida, não há uma transição suave
entre as temperaturas absolutas positivas e negativas - tão logo a
distribuição de energia é invertida, atinge-se um calor
descomunal.[Imagem: LMU/MPG Munich]
Redação do Site Inovação Tecnológica - 07/01/2013
Além da escala Kelvin
A escala de temperaturas absolutas - conhecida como escala Kelvin - é um dos conceitos centrais da física.
Por definição, nada pode ser mais frio do que o zero absoluto, estabelecido em 0 Kelvin, ou -273,15 °C.
Contudo, há muito os físicos sabem que, abaixo do zero absoluto, há todo um reino de temperaturas absolutas negativas.
Em 2011, um grupo de físicos teóricos alemães demonstrou que, se não é
possível passar suavemente pelo zero absoluto, como acontece na escala
Celsius, é possível saltar pelo 0 K e ir diretamente para esse reino
ainda inexplorado.
Agora, uma outra equipe alemã fez os experimentos e demonstrou na prática como ir abaixo do zero absoluto.
E a realidade mostrou-se impressionante: abaixo do quase inatingível
frio absoluto estão algumas das temperaturas mais quentes já observadas
no Universo.
O resultado terá largas implicações em várias áreas científicas, da física básica à cosmologia.
Calor absoluto
Simon Braun e seus colegas da Universidade Ludwig Maximilian de
Munique obtiveram a temperatura absoluta negativa movendo átomos em um
gás ultrafrio.
Na escala Kelvin normal - das temperaturas absolutas positivas - a
temperatura é proporcional à energia cinética média das partículas.
Mas nem todas as partículas têm a mesma energia - há na verdade uma
distribuição de energia, sendo os estados de baixa energia mais ocupados
do que os estados de alta energia - isto é conhecido como distribuição
de Boltzmann.
No caso das temperaturas Kelvin negativas, a distribuição é
invertida, e os estados de alta energia são mais ocupados do que os
estados de baixa energia.
O resultado é um calor que se aproxima do estado mais quente que se
pode obter quanto mais próximo a temperatura absoluta negativa está do
zero absoluto.
A inversão drástica dos estados de energia - uma distribuição de
Boltzmann invertida - faz com que a temperatura sub-Kelvin não seja mais
fria, mas incrivelmente quente.
"Ela é ainda mais quente do que qualquer temperatura positiva - a
escala de temperaturas simplesmente não vai ao infinito, ela salta para
valores negativos," disse Ulrich Schneider, coordenador da equipe.
Segundo o pesquisador, essa contradição é apenas aparente, e nasce da
forma como a temperatura absoluta tem sido definida ao longo da
história - o experimento abre a possibilidade de uma nova definição da
temperatura, o que pode fazer com que a contradição desapareça.
Motor com eficiência maior que 100%
A matéria em temperaturas negativas absolutas pode ter consequências científicas e tecnológicas sem precedentes.
Com um sistema robusto o suficiente poderá ser possível criar motores
a combustão com uma eficiência energética que supere os 100%.
E isso não significa uma violação da lei de conservação de energia -
esse motor hipotético poderia não apenas absorver energia do meio
quente, executando um trabalho como os motores normais, mas também
extrair energia do meio mais frio, executando trabalho adicional.
Sob temperaturas absolutamente positivas, o meio mais frio
inevitavelmente se aquece, absorvendo uma parte da energia do meio mais
quente, o que impõe um limite à eficiência do motor.
Contudo, se o meio quente tiver uma temperatura absoluta negativa, é possível absorver energia dos dois meios simultaneamente.
O trabalho realizado pelo motor será, portanto, maior do que a
energia retirada apenas do meio quente - sua eficiência será superior a
100%.
O
experimento pode ser comparado a esferas em uma superfície ondulada.
Nas temperaturas positivas (esquerda) a maioria das esferas fica nos
vales, em seu estado de energia mínimo, quase imóveis - uma distribuição
de Boltzmann normal. Em uma temperatura infinita (centro), as esferas
se distribuem uniformemente nos dois estados. Na temperatura absoluta
negativa (direita), entretanto, a maioria das esferas vai para os picos,
no limite superior de energia potencial (e cinética). Os estados com
energia total mais elevada ocorrem mais frequentemente - uma
distribuição de Boltzmann invertida. [Imagem: LMU/MPG Munich]
Desafiando a gravidade
O experimento tem também um impacto direto para o campo da
cosmologia, mais especificamente, sobre a energia escura, uma força
ainda desconhecida que os cientistas usam para explicar a aceleração da
expansão do Universo.
Com base apenas nas forças conhecidas, o Universo deveria estar se
contraindo devido à atração gravitacional entre todas as massas que o
compõem.
O experimento da temperatura absoluta negativa revelou um fenômeno
que desafia a gravidade, agindo no sentido contrário, exatamente como se
propõe que a energia escura faça.
O experimento se baseia no fato de que os átomos no gás não se repelem uns aos outros, como nos gases normais.
Na verdade, eles interagem de forma atrativa, ou seja, os átomos exercem uma pressão negativa.
A nuvem de átomos tenderia naturalmente a se contrair, devendo
colapsar, exatamente como em um Universo onde apenas a gravidade
estivesse atuando.
Isso, contudo, não acontece justamente por causa da temperatura
absoluta negativa, extremamente quente - e o gás não colapsa, exatamente
como o nosso Universo.
Temperatura absoluta negativa
A inversão dos estados de energia das partículas em um sistema
ultrafrio não pode ser realizada em um sistema natural - como a água,
por exemplo - porque o material teria que absorver uma quantidade
infinita de energia.
Mas a coisa é bem diferente quando se trabalha com um sistema no qual
as partículas - ou átomos - tenham um limite superior de energia.
Simon Braun trabalhou com um sistema artificial, composto por cerca
de 100 mil átomos em uma câmara de vácuo, o que os torna perfeitamente
isolados do ambiente externo.
Os átomos foram resfriados a uma temperatura de alguns bilionésimos
de um Kelvin, uma das temperaturas mais frias que se consegue obter em
laboratório.
Os átomos no gás ultrafrio foram então capturados por armadilhas
ópticas, feitas por feixes de raios laser, e dispostos em uma matriz
perfeitamente ordenada.
Cada átomo pode mover-se do seu local na matriz óptica para o local
vizinho por tunelamento, mas sem perder algo que é fundamental para o
experimento: ao contrário dos sistemas naturais, as partículas da matriz
óptica possuem um limite superior de energia.
Assim, a temperatura do sistema não depende apenas da energia
cinética, mas da energia total das partículas, o que inclui as energias
potencial e de interação, ambas igualmente com um limite superior
impostas pelo experimento.
Em condições normais, os átomos tenderiam a escapar da rede óptica,
colapsando e aglomerando-se novamente em uma nuvem disforme, sugada para
baixo pela gravidade. Mas os cientistas ajustaram a rede óptica para
que fosse energeticamente mais favorável aos átomos permanecerem em suas
posições ordenadas.
Os cientistas então levaram os átomos até seu nível superior de
energia total, materializando uma temperatura absoluta negativa, de
alguns bilionésimos -K, em um sistema que se manteve estável.
Bibliografia:
Negative Absolute Temperature for Motional Degrees of Freedom
S. Braun, J. P. Ronzheimer, M. Schreiber, S. S. Hodgman, T. Rom, I. Bloch, U. Schneider
Science
Vol.: 339 - 52-55
DOI: 10.1126/science.1227831
Negative Temperatures?
Lincoln D. Carr
Science
Vol.: 339 - 42-43
DOI: 10.1126/science.1232558